Com jornadas de trabalho que passam das 14 horas diárias e baixa remuneração, os entregadores de aplicativo se organizaram para reivindicar melhores condições. Depois da paralisação do dia 1 de julho, uma comissão se reuniu com parlamentares e o presidente da Câmara dos Deputados. O grupo exige a criação de um lei específica e deve parar no próximo dia 25.
A Câmara dos Deputados já sinalizou positivamente para o movimento dos entregadores. Já na próxima semana um texto deverá ser elaborado.
Avaliação dos Especialistas
O Portal Contexto ouviu especialistas de inovação e de direito trabalhistas. Eles avaliaram a necessidade da criação de uma legislação específica, os efeitos desta nova lei nas relações trabalhistas e também, como esta reivindicação pode impactar o futuro das empresas de inovação.
Inovação x legislação
As startups são empresas de base tecnológica que trazem soluções para problemas reais com um ganho de custo para o consumidor final. O formato entrega por aplicativo gerou oportunidade de trabalho, mas, no entanto, no Brasil, esta relação se dá de forma desigual.
Para comentar a situação dos entregadores de app da perspectiva do negócio, conversamos com Bruno Grillo Castello, CEO da Bcast Consultoria e especialista em apoiar o desenvolvimento de startups.
O especialista reforça que as startups quebram o status quo em busca de soluções mais eficientes. “Por isso, em um país como o Brasil, que sempre teve uma atenção muito grande à proteção dos interesses dos trabalhadores, alguns formatos acabam sendo questionados e criando polêmicas.”
Castello reforça que as startups não podem ter a prerrogativa da ilegalidade. No entanto, elas questionam os modelos regulamentados por legislações antigas, que podem se tornar barreiras à inovação. “São essas startups que colocam uma luz sobre a legislação e muitas já foram modernizadas graças a esse estímulo”, disse.
As startups criam modelos de negócio próprio e as pessoas podem ou não concordar com este modelo. De acordo com Castello, “no caso de empresas como o Uber, Rappi e iFood, os entregadores concordaram com as regras. E, além disso, tentamos encaixar uma startup dessas dentro do modelo tradicional, o negócio pode deixar de ser viável e aquela solução mais eficiente às necessidades dos consumidores e a oportunidade de uma nova forma de trabalho não serão melhoradas, na verdade, elas passaram a não existir.”
Bruno Grillo Castello ainda traz o seguinte questionamento: “se pararmos para refletir, se o Uber custasse para o passageiro o mesmo ou mais caro que o Táxi, se uma entrega delivery nos custasse o mesmo ou mais que o próprio prato, nós usamos o serviço? Eles existiriam?”
Para finalizar, o consultor destaca: “gostaria de lembrar que isso tudo não significa que toda startup tem que obrigatoriamente ser disruptiva a esse ponto caso contrário não terá sucesso. Dependendo da área de atuação e de solução oferecida, essa inovação pode ser apenas no modelo de negócio, por exemplo.”
Avaliação dos advogados
De fato, é preciso criar uma nova legislação para regulamentar o trabalho dos entregadores de app?
Ronaldo Toletino, advogado trabalhista e sócio da Ferraz dos Passos Advocacia, reforça que é o papel do Estado regulamentar as relações de trabalho e de consumo, assim, não poderia ser diferente com os entregadores de app. Ele disse ainda que “Não acredito que uma regulamentação da atividade vá inviabilizar a atividade. Pelo contrário, trará mais segurança jurídica para as partes envolvidas, uma vez que será previamente estabelecido os direitos e deveres de cada um. Deve ser garantido aos entregadores por aplicativo um mínimo de direitos, como por exemplo um seguro por acidente.
Eliseu Silveira, advogado trabalhista e especialista em políticas públicas, explica que “o grande celeuma é o regime de contratação”, isto porque os entregadores não são entram no regime da CLT e atuam como são parceiros das marcas, eles recebem por percorrer uma determinada distância.
Sem a carteira assinada, eles não têm direitos como férias e hora extra. Por outro lado, não precisam cumprir horários ou metas. O advogado explica que “assim, para tratar esse contrato já existe o código civil de 2002 e outras leis esparsas que regulam a prestação de serviço. A necessidade de novas regras é porque a maioria dos entregadores não formalizam CNPJs para o trabalho e ficam desguarnecidos de proteção social (INSS) e de garantias de condições dignas de trabalho. Para abarcar essa situação é necessário novas regras.”
A advogado Carlos Hernani, sócio da Riedel, Azevedo Advogados Associados, discorda que seria preciso criar uma lei específica, para ele, a legislação vigente poderia ser aplicada ao caso, mas é possível sim, criar uma nova norma. Para isto, é preciso a redação de um projeto de lei, podendo ser de autoria da Presidência da República ou dos parlamentares, para ser discutido no Congresso Nacional. Caso seja aprovado, segue para sanção presidencial e assim, se torna lei. “Este pode ser um processo demorado ou rápido, dependendo da vontade política, podendo assim, ser algo de alguns meses ou anos”.
Na avaliação do Rodrigo Veiga de Oliveira, advogado e professor de direito, o Brasil tende a uma desnecessária atividade legislativa, assim, o Estado atua como um regulador das atividades econômicas e “muitas das vezes se impõe como verdadeiro entrave à modernização e criação de novas empresas, principalmente diante da constante modernização das relações decorrentes do mundo globalizado.”
Ele ainda entende que a reivindicação dos entregadores vão “no sentido de criar uma nova categoria de relação empregatícia”. Sendo assim, haveria uma quebra do modelo de negócio proposto pelos aplicativos, o advogado reforça que “pretender a regulação de tais serviços através de leis mais rígidas, na tentativa de se criar uma nova categoria de relação trabalhista, vai totalmente de encontro o princípio da liberdade econômica, criando entraves desnecessários ao surgimento de novas empresas para atendimento à população.”
O advogado especialista em Negociação, Contratos, Inovação e Internacionalização de Empresas, Emanuel Pessoa, entende que existe uma demanda para regulação dos trabalhadores da chamada ‘gig economy’, como ele explica, “economia de bicos, como os motoristas de aplicativo.
Pessoa lembra que muitos trabalhadores deste modelo de negócio já ingressaram na Justiça com a alegação de serem empregados e assim, terem os mesmos direitos das pessoas que têm carteira assinada. “O fato é que ao se reconhecer os mesmos como empregados, os aplicativos serão inviabilizados, porque terão de repassar custos aos consumidores, que dificilmente vão aceitar pagar ainda mais por entregas”.
Uma nova legislação trabalhista pode ser um entrave para as startups e empresas de inovação?
Para Eliseu Silveira, a criação de uma legislação específica pode significar “um retrocesso ao aceleramento de novos empreendedores”. Isto porque as startups representam modelos inovadores e enxutos, com preços mais acessíveis.
Carlos Hernani também acredita no efeito negativo da norma. Ele entende que a legislação própria pode encarecer o serviço de entrega e ainda inviabilizar algumas startups, em especial, as iniciantes, pois, elas “entram no mercado, o custo é muito alto, não dá conta de suprir e às vezes, se repassar o custo para o cliente, o cliente não paga. É complicado, isto pode causar um aumento de custo tanto para empresa quanto para o cliente. Pode haver um esfriamento do comércio, e as pessoas parem de usar esse tipo de serviço”.
Efeitos da criação de uma nova norma
De acordo com Emanuel Pessoa, o surgimento de uma nova lei pode inviabilizar o negócio não só das empresas de aplicativo, mas também para os próprios entregadores. “É a Lei da Oferta e da Demanda. Com o aumento do preço, haveria uma demanda menor por serviços de entrega, ao mesmo tempo em que o desemprego massivo aumenta a oferta de mão-de-obra de entregadores. O resultado é claro. Uma grande parte, dos entregadores, se não a maior parte, ficaria sem trabalho. Na ânsia de defender direitos que a prestação de serviços não confere, essas pessoas estariam reduzindo a chance de obterem renda, agravando a própria situação.”
Pessoa defende que “evidentemente, como qualquer pessoa, eu gostaria que os entregadores ganhassem mais, mas a solução para isso deve ser de mercado, e não por meio de lei, a qual deveria, quando muito, no quadro atual, sacramentar que os entregadores são prestadores de serviço.”
O advogado ainda vislumbra um outro efeito: “no caso específico dos entregadores, uma legislação que lhes conferisse direitos iria fatalmente prejudicar toda a indústria de alimentos, que depende fortemente dessas entregas, e comprometer a viabilidade dos aplicativos, engessando um processo disruptivo quanto à forma que obtemos os bens e produtos que desejamos.”
O professor e advogado Rodrigo Veiga de Oliveira também concorda que a regulação do mercado seria a melhor solução. “A avaliação do mercado costuma ser mais eficiente e exigente que a avaliação do governo. A regulação estatal, por fim, costuma dificultar a entrada de concorrentes, sendo que a concorrência que realmente garantirá a qualidade e preço dos serviços”, defende.
Como fica o futuro no mundo das startups?
A burocracia pode aparecer como uma inimiga da inovação, Eliseu Silveira entende a nova lei, caso aprovada, “poderá barrar grandes empresas. A exemplo, as empresas aéreas de lowcost (baixo custo) só vieram operar no Brasil quando se permitiu uma nova regulamentação legislativa mais branda”.
Silveira acredita que o movimento de reivindicação dos entregadores pode abrir precedentes negativos. Estes trariam um engessamento da inovação no país, atrapalhando o surgimento de novas empresas de base tecnológica.
Para o advogado Carlos Hernani, os empreendedores precisam estar atentos às legislações, como trabalhista, civil, e direito do consumidor. Por outro lado, as normas também vão evoluindo de acordo com as inovação. “Há algumas inovações, alguns tipos de comércios, que são tão diferentes que não existe legislação que se adeque. Um exemplo é o teletrabalho, não existia na CLT até a reforma de 2017. Acontece sim de tanto, ter inovações que precisam de uma adequação legislativa, mas também, a empresa quando está surgindo, ela tem que se cercar todo cuidado com a legislação que vai reger as atividades”, finalizou.