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Entrevista com Melillo Dinis, diretor do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral

A Lei da Ficha Limpa completa dez anos. Originária de um projeto de iniciativa popular, a norma teve como aliado Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, que se mobilizou para para coletar as assinaturas necessárias para levar a proposta para o Congresso Nacional.

A mobilização deu muito certo. Foram mais de 1,6 milhão de assinaturas coletadas nas ruas. Em parceria com o MCCE, site Aavaz publicou um abaixo-assinado digital que atingiu a marca de 2 milhões de assinaturas.

O apoio popular gerou a pressão necessária para que o projeto entrasse na agenda legislativa. Com a aprovação do Congresso Nacional, a medida seguiu para sanção presidencial e a publicação no Diário Oficial aconteceu no dia 4 de junho de 2010.

Para entender melhor os efeitos da Lei da Ficha Limpa, conversamos com o advogado, analista político e diretor do MCCE, Melillo Dinis.

CTXT: Qual o efeito da Lei da Ficha Limpa nestes últimos 10 anos?

Melillo Dinis: A mudança que a Lei da Ficha Limpa (LC nº 135/2010) produziu no Brasil foi bem significativa, incluindo a possibilidade de inelegibilidade para os políticos condenados por decisão de órgão judicial colegiado, independentemente de sentença condenatória transitada em julgado. Por outro lado, a decisão deverá ser realizada/manifestada em plenária, afastando-se assim decisões proferidas por Juízo de Primeiro Grau e decisões monocráticas manifestadas por relator de processo de segundo grau.

Os efeitos jurídicos trazidos pela norma tiveram forte incidência não apenas no mundo jurídico, mas nos efeitos políticos causados. Certamente que o tema não será exaurido em um passe de mágica. Tratar das diferentes maneiras de combate à corrupção é uma luta, uma verdadeira utopia, necessária e estruturante, cujo principal foco é acreditar que a democracia um dia será efetivada com direitos ampliados, indistintos, imparciais e voltada para o bem comum.

Da mesma forma, a LC nº 135/2010, trouxe um verdadeiro debate jurídico inovador ou contraditório em alguns momentos, sobretudo nos tribunais eleitorais e na mais alta corte do país – Supremo Tribunal Federal – tanto acerca da constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa sobre a aplicação ou não do princípio da presunção de inocência e os seus efeitos jurídicos. Para a população que apoiou e lutou pelo tema, a Lei da Ficha Limpa é um alento para que se possa fazer da política um espaço e um processo com mais integridade e ética.

De forma a Ficha Limpa contribui para o combate à corrupção? 

Melillo Dinis: O combate à corrupção é um desafio permanente, não só no Brasil. A Lei da Ficha Limpa ajudou e ajuda muito no campo eleitoral. Além disto, ela adentrou no universo político e social brasileiro: uma pessoa é ou não “ficha limpa”. 

O que ensaio, diante de tamanha largueza do espectro normativo, vislumbrar algumas características do combate à corrupção. A primeira delas é que há uma enorme dificuldade, no modelo brasileiro, em oferecer uma resposta integral que transforme a questão da corrupção em uma estratégia comum ao Estado e à sociedade. Mesmo o leitor mais desatento, por conta do texto ou por outro fator, ao encerrar a enumeração da legislação pós-1988, não deixaria de concordar que, no campo do combate à corrupção (dentre outros), quanto mais se produz leis, mais leis são necessárias. E, por pior que possa soar, as leis ainda são parte de nossa estrutura estatal e da necessidade social. Não funcionará, por exemplo, uma lei com dois artigos: artigo 1º – Todos serão honestos; artigo 2º – São revogadas as disposições em contrário.

Aqui cabe ressaltar que não se trata de defender a opção por um modelo impossível para um país, como o Brasil, a partir de sua tradição político-jurídica, de seu Estado e de sua estrutura social. É que o modelo de Constituição que temos não permite a extrema redução na quantidade das leis que transforme – no limite – o sistema em um governo de homens. Por outro lado, um governo de leis é preferível no contexto das democracias recentes. Esta opção, além do aspecto essencial da submissão de todos às leis, garante à democracia a emanação (se não exclusiva, ao menos predominante) de normas gerais e abstratas para o seu funcionamento.

Considerando os 10 anos da lei, estamos avançando ou há um retrocesso no combate à corrupção?

Melillo Dinis: Do ponto de vista da corrupção eleitoral, houve um avanço a partir de diversas leis, além da Lei da Ficha Limpa. Além disto, os tribunais eleitorais adotaram decisões que fortaleceram a própria concepção e espírito da Lei. 

O Brasil avançou também em outros espaços e temas no combate à corrupção. Um exemplo foi a Lei Anticorrupção Empresarial (Lei nº 12.846/2013). Outro exemplo foram as diversas operações, dentre elas a Lava Jato, que permitiram que o controle fosse exercido. Mas, da mesma forma, a crítica à corrupção transformou-se em um dos sentidos da política no país. O interessante é que os eventos que estão na origem do escândalo e do clamor popular foram fundamentais, em grande medida, por esta interpretação da vida política. Uma percepção que, paulatinamente, se isolou do conflito entre ideologias, políticas públicas (e de governos) e enveredou em um conteúdo moral e uno para cada uma das partes. Mais uma divisão entre os brasileiros. Pouco diálogo e muita luta pela narrativa mais “pura”.   

O ativismo persecutório contra a “política tradicional” foi além do mero controle da legalidade de atos ilícitos de agentes públicos que definiria o limite do Judiciário. Representou uma epopeia de “poder(es) neutro(s)” contra o sistema político partidário, os governantes e as elites políticas, acusados de corrupção. Assim, como em democracias consolidadas, países com experiência democrática mais recente tiveram uma progressiva, mas cambaleante interpenetração das regras jurídicas no espaço político, o que conduziu a divergentes percepções da vida política. E, como consequência, um empobrecimento da vida democrática.

Foi neste duplo contexto que cresceu o poder de quem falava em nome do sentido “correto” das condutas políticas, posicionados no espaço da grande mídia, nas redes sociais ou das cúpulas judiciais. A complexidade de captar esse fenômeno e compreender seu significado no âmbito de um regime democrático está justamente na diluição das fronteiras. Ou seja, os limites entre o espaço do controle jurídico da corrupção pelos tribunais (e demais órgãos de controle), o controle da informação da corrupção pela mídia/redes sociais e as diferenças do uso da escandalização da política como arma de poder nos embates políticos ficaram embaçados.

 

Ficha Limpa: Entrega das assinaturas no Congresso Nacional em 2009. Foto de Rodolfo Stuckert/Câmara dos Deputados

De que forma a Lei da Ficha Limpa contribui para o processo democrático?

Melillo Dinis: No mundo da política a corrupção causa terríveis prejuízos. Além de dilapidar o patrimônio público, atrasar o desenvolvimento e enriquecer poucos em detrimento de tantos, a corrupção destrói a própria sociedade, seus valores e suas relações, abala a representatividade, esfarela os caminhos da democracia e transforma os poucos recursos em muita confusão. Em todos os níveis, a corrupção anda de mãos dadas com o autoritarismo das “autoridades”, a ganância dos fracos travestidos em poderosos e a pouca inteligência dos controles. O curioso, no atual estágio da democracia brasileira, é que aqueles que não se consideram corruptos neste momento, no dia seguinte, podem estar envolvidos em escândalos com falcatruas e em falcatruas sem escândalos.

A família da corrupção tem parentes: o suborno, o nepotismo, o fisiologismo, o clientelismo, o crime organizado, a lavagem de dinheiro, o enriquecimento ilícito, o favorecimento, as mordomias, a negociata, o caixa dois, o jeitinho brasileiro. Esta família realiza muitos encontros durante o ano, mas adora um período eleitoral ou os dias que antecedem importante decisão burocrática. Há uma tradição persistente de transformar o certo em errado.

De todo modo, a luta contra a “corrupção” faz parte de movimento dirigido à inclusão social e à fortificação da cidadania. Portanto, em princípio, as críticas às ações judiciais, às atividades do ministério público e às investigações da polícia federal destinadas ao combate à corrupção em uma perspectiva de um Estado constitucional e democrático, orientado pelo princípio da igualdade, devem ser separados do espetáculo e das narrativas heroicas. De certa maneira, é constrangedor para muitos que deram apoio político e eleitoral constatar que membros de um determinado governo estiveram envolvidos em corrupção. Ou estarão.

Entretanto, o combate à corrupção no Estado democrático de direito não deve ser realizado mediante violação à Constituição e à lei, de maneira arbitrária, como nos regimes autoritários e totalitários, cuja aparente pretensão de banir a corrupção a todo custo, em vez de extingui-la e “purificar” o país, redunda usualmente em novas formas de corrupção. Exige-se dos agentes públicos, especialmente dos promotores e juízes, no Estado constitucional, que combatam a corrupção nos termos da lei e da Constituição. Isto pode parecer uma tautologia. Mas, no Brasil é uma advertência obrigatória. Ninguém está acima da lei e da Constituição. Esta é a garantia mínima. Mesmo quando a tiazinha do WhatsApp afirmar o contrário, creia: sem a democracia estaremos muito piores!

Por que há uma morosidade para aprovar leis/instrumentos de combate à corrupção?

Melillo Dinis: Não considero. Fazer leis não é uma tarefa simples. O Brasil, aliás, tem uma legislação de vanguarda no campo das leis de combate à corrupção. A partir da Constituição de 1988, o Brasil aprovou novo conjunto de normas para enfrentar o quadro da proteção, racionalização e organização da administração pública, defesa da ética, da moralidade pública, das eleições limpas e do combate à corrupção. Dentre elas, destacam-se:

m.1) a proibição da compra de votos (artigo 41-A), e

m.2) a proibição do uso eleitoral da máquina administrativa (parágrafo 5º do artigo 73), além de permitir que a punição – cassação do registro do candidato – possa ser aplicada mais rapidamente, antes da eleição ou da diplomação do infrator.

É notável, portanto, no recente campo jurídico que se dedica ao combate à corrupção, ao malfeito e à defesa da probidade, da ética pública e da moralidade administrativa e da transparência o quantitativo da produção normativa a partir da Constituição de 1988. Salta aos olhos o número de leis nesse período da história brasileira, sem prejuízo das muitas e importantes decisões dos tribunais pátrios e dos órgãos de controle interno e externo.  Mas aqui há uma contradição. No sentido de fornecer uma solução rápida e “justa” aos diversos casos de corrupção, ao lado do fortalecimento das penas, das normas ou dos procedimentos, cuidou-se de produzir uma quantidade expressiva de normas. Contudo, este maior número de leis não correspondeu, na mesma medida, a um sentimento de diminuição do fenômeno da corrupção na sociedade brasileira. A princípio, a quantidade não configura um problema em si. Pode ser reflexo da espiral de escândalos e casos de corrupção que, na democracia recente, emergiu ao público em todo o país. Não se defende que o cipoal brasileiro de leis (e os cipoalzinhos que dele descendem) seja sinal de qualidade institucional. Mas, não é possível fulminar o modelo legislativo brasileiro apenas por seu tamanho, sob o risco de jogar fora o bebê junto com a água do banho. Temos, então, um bom conjunto de leis e normas para enfrentar a corrupção.

Precisamos é de mais cidadania, educação e mobilização. 

O MCCE, Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, ampliou sua atuação e hoje funciona de forma permanente com ações em todo o país com objetivo de combater a corrupção eleitoral, bem como realizar um trabalho de fiscalização, educação e monitoramento a fim de ter um cenário político e eleitoral mais justo e transparente. Integram o MCCE cerca de 70 entidades, e o Comitê Nacional em Brasília, os comitês estaduais e municipal difundidos por diversas regiões do país. Eles exercem um importante papel de fiscalização, educação popular e monitoramento do orçamento público e da máquina administrativa. Eles são constituídos de forma voluntária por representantes da sociedade civil, pastorais, sindicatos, associações e outros grupos organizados e entidades da rede MCCE.

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