Quem tem o hábito de tomar leite e iogurte desnatados, ou já experimentou sorvetes feitos com óleo de palma ou outras fontes alternativas de gordura em vez do tradicional creme de leite, certamente já se deu conta da falta que a gordura do leite faz ao nosso paladar.
A opção de muitos consumidores por leite e produtos lácteos com teores reduzidos ou sem gordura tem como justificativa a alegação, amplamente difundida pela comunidade médica e pelos órgãos de saúde pública, de que a gordura do leite é prejudicial à saúde por ser uma fonte de calorias, colesterol e, principalmente, de gordura saturada.
Como tal, a ingestão deste componente do leite deveria ser evitada de forma a reduzir o risco de obesidade e de doenças cardiovasculares, levando a indústria de laticínios a abarrotar as prateleiras dos supermercados com as onipresentes versões “low fat” e “fat free”, “baixa gordura” e “sem gordura” em tradução livre.
Paralelamente, fontes alternativas de gordura, tidas como mais saudáveis (à base de óleos vegetais), passaram a ocupar o lugar da saborosa manteiga nas receitas culinárias e no pão nosso de cada dia. Fondue com um bom vinho? Só se for com queijo “light”.
Impossível consumir manteiga ou leite integral e não imaginar uma camada de gordura sendo imediatamente depositada no seu abdômen ou na parede das suas coronárias. Cuidado com o seu colesterol! Quem nunca ouviu isso? É quase uma sentença de morte, correto?
MUITO ALÉM DO COLESTEROL-LDL
Se levarmos em conta os principais estudos científicos conduzidos nas últimas duas décadas, esta longa e repetida história está com os dias contados. Evidências crescentes indicam que a ingestão de produtos lácteos com teores regulares de gordura está inversamente associada ao risco de obesidade e de diabetes do tipo 2, dois importantes fatores de risco para o desenvolvimento de doenças cardiovasculares.
Mas a ingestão da gordura do leite não aumenta o colesterol-LDL, o tal colesterol ruim? Sim, mas também aumenta o colesterol-HDL (o bom) e reduz os triglicerídeos (TG), o que é benéfico à saúde cardiovascular. Além disso, a gordura do leite aumenta predominantemente as partículas grandes e leves de colesterol-LDL, que são menos susceptíveis à oxidação e, portanto, menos aterogênicas.
A ciência mais recente nos ensina ainda que há diversos biomarcadores de risco cardiometabólico. O colesterol-LDL é apenas um deles e, segundo as melhores evidências disponíveis, possivelmente menos importante do que se imaginava.
Na verdade, alguns cientistas respeitados defendem a tese de que ter alto colesterol-LDL (a não em valores muito acima dos preconizados atualmente), sem algum outro fator de risco associado, não aumenta a chance de um indivíduo saudável sofrer um infarto (prevenção primária). Esta tese, por razões óbvias, não agrada muito aos prescritores e fabricantes das estatinas, uma das drogas mais consumidas e rentáveis de todos os tempos.
Sendo mais conservador, a melhor ciência disponível indica que o LDL-colesterol é menos importante do que outros biomarcadores como, por exemplo, a relação TG:HDL e a relação colesterol total:colesterol-HDL, ambas alteradas em sentido favorável quando maiores quantidades de gordura láctea são consumidas.
Neste mesmo sentido, uma recente revisão sistemática e meta-análise de ensaios clínicos randomizados (“padrão ouro de evidência”) mostrou que, embora a restrição da ingestão de gordura saturada reduza o colesterol sérico, isso não se traduz em menor risco de morte por doenças cardiovasculares.
Além dos lipídeos circulantes, uma inflamação crônica de baixo grau tem sido apontada como fator determinante para o desenvolvimento de doenças cardiovasculares e de outras doenças crônicas não-transmissíveis como câncer, diabetes do tipo 2, doenças neurodegenerativas, etc.
Neste aspecto, as melhores evidências disponíveis apontam para uma ação predominantemente neutra ou anti-inflamatória dos produtos lácteos, independentemente do seu teor de gordura. De fato, inúmeros compostos com propriedades anti-inflamatórias já foram identificados na gordura do leite, sendo o mais conhecido deles o ácido rumênico, comumente referido como ácido linoleico conjugado (CLA, em inglês). Digno de registro, o teor deste ácido graxo na gordura do leite pode ser aumentado expressivamente por meio de algumas estratégias de alimentação de vacas e outros ruminantes, sendo essa uma linha importante de pesquisa na Embrapa Gado de Leite.
AS GORDURAS SATURADAS NÃO SÃO IGUAIS, E OS NUTRIENTES NÃO SÃO CONSUMIDOS ISOLADAMENTE, MAS COMO PARTE DE UMA MATRIZ ALIMENTAR
Por fim, mas não menos importante: a ciência moderna nos mostra que ácidos graxos saturados diferentes apresentam efeitos biológicos distintos, e que os alimentos são muito mais do que a soma dos seus nutrientes. Em termos práticos, isso significa que:
1) Alimentos diferentes podem conter o mesmo teor de gordura saturada, mas apresentar efeitos diferentes sobre a nossa saúde em função dos tipos de ácidos graxos que compõem essa fração
No caso do leite e dos produtos lácteos, a gordura saturada é composta por ácidos graxos dos mais variados tamanhos, com número par ou ímpar de carbonos, e com estrutura linear ou ramificada (sim, é tão complexo quanto parece).
Apenas para que se tenha uma ideia, a gordura do leite é a única fonte de ácido butírico, um ácido graxo saturado de cadeia curta com inúmeros benefícios à saúde. É o mesmo composto produzido pela nossa microbiota intestinal quando ingerimos alimentos ricos em fibras.
Além disso, a gordura do leite contém quantidades apreciáveis de ácidos graxos de cadeia ímpar, algo incomum em outras fontes de gordura, e que também parecem exercer efeitos positivos à saúde. Para se ter uma ideia, concentrações mais elevadas destes ácidos graxos no sangue (o que ocorre quando ingerimos gordura do leite) estão associadas à menor incidência de diabetes do tipo 2 em vários estudos.
2) O efeito de um determinado alimento sobre a nossa saúde não pode ser determinado com base no teor de um ou mais nutrientes:
É o que chamamos de “efeito da matriz alimentar”. Como exemplo, a ingestão de uma mesma quantidade de gordura na forma de queijo ou de manteiga resulta em efeitos distintos sobre biomarcadores de risco cardiovascular.
O leite e os produtos lácteos são matrizes alimentares muito distintas, e tal fato deve ser levado em conta na escolha dos alimentos que vão integrar a nossa dieta.
Lácteos fermentados (queijos e iogurtes), em particular, parecem se destacar positivamente em função de uma série de fatores que merecem ser tratados em um outro artigo.
AS CALORIAS TAMBÉM NÃO SÃO IGUAIS
Ao contrário do que seria esperado, a ingestão de leite e de produtos lácteos com teores regulares de gordura tem sido inversamente associada ao risco de obesidade em diversos estudos, tanto em crianças quanto em adultos.
Estes achados podem parecer controversos diante do elevado valor calórico da gordura, uma vez que o ganho de peso é frequentemente associado a um consumo excessivo de calorias.
No entanto, uma série de estudos têm indicado que as calorias não são iguais. Como dito por um eminente cientista da área, Dr. Robert Lustig, em artigo que compara os efeitos biológicos da glicose e da frutose: “Isocalóricos, mas não isometabólicos”.
Por exemplo, 100 calorias oriundas de gordura parecem afetar de maneira distinta o acúmulo de gordura corporal quando comparado à mesma quantidade de calorias provenientes da ingestão de carboidratos.
Isso ocorre devido à diferenças na regulação das vias metabólicas de lipogênese/lipólise, gasto energético basal, controle da fome/saciedade, etc. É nesse princípio que são baseadas as famosas dietas “low carb”, que tem como foco o tipo de alimento consumido e não o total de calorias.
Em particular, as alterações promovidas pelos diferentes alimentos e padrões dietéticos sobre a composição da nossa microbiota intestinal têm sido objeto de enorme interesse em estudos relacionados à obesidade e doenças associadas.
A importância da microbiota na nossa saúde é muito maior do que se imaginava. Como dito por outro eminente cientista, Dr. Alessio Fasano: “Your gut is not Las Vegas. What happens in the gut does not stay in the gut“. Ou “Seu intestino não é como Las Vegas. O que acontece no seu intestino, não fica no seu intestino”, em tradução livre.
COMENTÁRIOS FINAIS
A imagem negativa da gordura do leite como um pacote indesejável de calorias, colesterol e gordura saturada está, lenta mas progressivamente, se desfazendo à luz das evidências científicas produzidas pelos melhores grupos de pesquisa do mundo.
Um brinde ao leite e aos produtos lácteos integrais. O nosso paladar e a nossa saúde agradecem.
Sobre o autor: Marco Gama é Doutor em Nutrição Animal pela Esalq/USP, zootecnista, Coordenador do subcomitê brasileiro de nutrição e saúde da FIL-IDF e Pesquisador da Embrapa desde 2006.
Contexto Livre é uma coluna rotativa, de assuntos diversos escrita por pessoas bacanas que tenham algo legal e inspirador pra compartilhar.