Ele descreve de forma quase poética o Rio antigo, de pequenas e precárias profissões: tatuadores, trabalhadores da estiva, mercadores de livros, músicos ambulantes, “os urubus” – de olho nos mortos para prestar auxílio funerário à família. O submundo passional de crimes, detentos, meretrizes. O mundo real da miséria, eterna chaga que molda esta cidade que poderia ser um país. Enxerguei de imediato um paralelo entre a exposição no MAR e a obra do famoso flaneur. O seguinte trecho consta no texto de apresentação dos curadores:
“Eis a cidade do Rio de Janeiro, com as suas belezas, suas seduções e seus tormentos. Suas religiosidades e seus sacrilégios. Seu Cristo de braços abertos sangrando em cada corpo que tomba por mil ou por nenhuma razão.
Eis a cidade do Rio de Janeiro, com o seu tempo de muitas épocas. Aqui o passado costuma se intrometer no presente e os dias serem marcados por uma ordem que é um caos. Mas a alma carioca forja os dias de amanhã. Existe nela uma sorridente esperança que teimosamente segue, apesar de tudo, urdindo o futuro”. Conceição Evaristo
Fiquei ainda mais interessando na exposição quando soube que o historiador Luiz Antônio Simas e a escritora e linguista Conceição Evaristo estavam na curadoria. O vídeo que abre a exposição traz os dois em uma conversa com Teresa Cristina sobre o Rio dos subúrbios. Em seguida, uma bela referência à religiosidade de matriz afro-brasileira abre uma das galerias. A formação da identidade carioca e sua origem eminentemente negra é o foco do espelho que vi em “Crônicas Cariocas”. A poesia que nasce da favela, das escolas de samba, do baile charme A cultura sábia das matriarcas, pretos-velhos e ciganas. A malandragem das ruas, a ginga nos forrós e gafieiras… A feira de São Cristóvão, o Mercadão de Madureira.
O Rio dos terreiros, das rádios comunitárias, do jogo do bicho. Cidade multicultural, que abriga o luxo e o lixo. Rio que abraça, beija, morde, mastiga e cospe Gentilezas e Rosários. Rio complexo, refratário. O Rio de Moïse, Durval, Amararildo, Marielle. O Rio das belezas e delícias: incomparável, indescritível! Rio das águas de março – para as quais nunca estamos preparados… O que diria João do Rio se visse agora a cidade pela qual se apaixonou? Ficaria aterrorizado com o frenesi caótico e violento? Se interessaria pelos catadores de latinha, pelos pedintes do trem, pelos moradores de rua da Lapa, pela rapaziada da boca?
Percorri toda a extensão da exposição – incluindo a ampla área com belas obras no andar térreo – como um flaneur, com cuidado para absorver e registrar o máximo para esta crônica carioca. Fiquei embevecido com tantas imagens, um deleite para os sentidos. Com certeza, merece mais de uma visita: “Crônicas Cariocas” faz a mente viajar em um universo encantador e instigante, às vezes pornográfico, quase sempre ignorado pelos “flashes” e “likes”, mas que compõe de forma visceral o caldeirão chamado Rio de Janeiro.
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